Ele olhou pra mim com aquela cara de fúria como se eu tivesse feito algo. Mas na verdade quem estava fazendo a mim era ele.
Há muito tempo não saíamos juntos. Eu queria fazer algo divertido, tirar aquela cara mal humorada dele, esquecer um pouco dos problemas que insistiam em nos atormentar dia após dias durante esses anos a fio. Esquecer por um tempo não é omitir simplesmente. É apenas dar ao próprio sistema nervoso um período pra ele refletir, pensar e se possível relaxar. Mas esse luxo não pode ser dado à gente pobre como eu. Esse luxo não pode ser dado a pessoas sonhadoras como eu. Eu me senti a última das mortais. Entendam por que.
Saímos, passeamos um pouco pelo calçadão da praia, caminhamos sentindo a brisa fresca naquela noite que tinha tudo pra ser uma noite difícil pra dormir. Paramos em uma das várias tendas espalhadas pela orla da praia que oferecem música ao vivo gratuita aos finais de semana para os turistas terem mais um motivo para estender o passeio ao mar com a noite no litoral. Na tenda tocava as melhores músicas de flashback, um segmento da música que eu sempre adorei desde menina. Entrei sem temor, estava solta, rindo, quando ele protestou irritado:
- Vamos embora.
E eu perguntei sem jeito:
- Por quê? Acabamos de chegar! Vai, pelo menos estamos fazendo algo diferente, GRATUITO (já que a maior parte, diria 99,8% dos nossos problemas se refere ao maldito e estúpido dinheiro) longe de casa, daquele computador que não é mais alternativa de divertimento, só escravidão, e daquela casa que só nos faz mal.
- Eu não gosto dessas músicas “pra velho”.
- Fala sério! Você sempre se divertiu comigo ouvindo isso! Por que agora ta fazendo isso? Vai dizer que isso não é melhor do que aqueles “funks” malditos que seus amigos insistem em ouvir?
- Eu só fingia que ria e me divertia porque era obrigado por você a fazer isso.
Aquilo foi um choque. Senti-me enganada esse tempo todo que a gente ria das melodias meio bregas, o visual estranho dos anos 80 e tudo mais que lembra aquela época de músicas inteligentes e visuais exóticos. Senti duas lágrimas correrem a face. Disfarcei e enxuguei com os dedos. Nossa diferença de idade começava a pesar de maneira relevante agora. Eu me sentia uma velha, por não gostar dessas músicas que fazem apologia as drogas e a promiscuidade. Nunca gostei disso, nem quando era mais jovem. No entanto, vi ali, uma pessoa que sempre confiei, sempre admirei, falando com todas as letras que eu era uma velha. VELHA. Aquilo me doeu no fundo da alma. Música pra mim sempre teve uma importância tão grande quanto meus sonhos. Não consigo viver sem os dois.
Passei o resto da noite calada. Fui embora pelo menos umas 4h antes do previsto. Chegando em casa, abafada, grande calor que tinha feito durante o dia, armazenado nas paredes acinzentadas e desprovidas de emoção, fui ao banheiro tomar uma ducha. No chuveiro, me permiti que minhas lágrimas se fundissem com a água que cobria meu corpo. Vesti-me e fui para o quarto onde ele roncava alto já. Acomodei-me no canto da cama, o cutuquei e pedi para que fosse embora. Queria pelo menos chorar sossegada, sem nenhum expectador. Da mesma maneira que eu jurei para mim mesma que nunca mais sonharia com o tal do casamento de véu e grinalda, sonho de menina, que eu sei hoje, aos 32 anos , nunca realizarei, prometi a mim mesma: minhas músicas favoritas são pedras preciosas, então não as dividirei com mais ninguém. Músicas se tornaram pra mim, tão pessoais quanto minha intimidade, então não interessa para mais ninguém além de mim mesma o que carrego no MP3. MP3 sim, ou pensa só porque sou velha não posso me render à modernidade? (nada contra um bom vinil, afinal saudosismo é tudo).
Passei a manhã de hoje procurando no youtube todas as musicas depressivas que poderia ouvir. Depois de tamanha decepção, tenho meu direito a não esconder o que sinto, mas também não revelar o que ouço.
“Posso até perdoar. Esquecer, jamais.”
Kelly Christine
E esse é uma das músicas que retratam bem meu "eu" hoje:
Queria fazer diferente hoje. porém canso de ver o futuro repetir o passado.
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